Na
quinta-feira (1°/3) o Ministério da Saúde lançou o Índice de Desempenho
do SUS (IDSUS 2012), ferramenta que avalia o acesso e a qualidade dos
serviços de saúde no país. Criado pelo MS, o índice avaliou entre 2008 e
2010 os diferentes níveis de atenção (básica, especializada
ambulatorial e hospitalar e de urgência e emergência), verificando como
está a infraestrutura de saúde para atender as pessoas e se os serviços
ofertados têm capacidade de dar as melhores respostas aos problemas de
saúde da população.
De acordo com o Ministério da Saúde, o fundamento teórico do IDSUS 2012 é
o projeto Desenvolvimento de Metodologia de Avaliação do Desempenho do
Sistema de Saúde Brasileiro (Pro-Adess), coordenado pela Escola Nacional
de Saúde Pública (ENSP) e pelo Instituto de Comunicação e Informação
Científica e Tecnológica em Saúde (Icict), unidades técnico-científicas
da Fiocruz. Pesquisadores da ENSP e de outras instituições deram suas
opiniões e contribuições sobre a divulgação feita pelo Ministério da
Saúde a respeito do Índice de Desempenho do SUS.
O modelo de avaliação do Pro-Adess considera que o desempenho do sistema
de saúde brasileiro deve ser analisado em um contexto político, social e
econômico que traduza a sua história e sua conformação atual, seus
objetivos e prioridades. Dentro desse contexto, devem ser identificados
os determinantes de saúde associados aos problemas de saúde tidos como
prioritários, evitáveis e passíveis de intervenção. Sua apreciação deve
ser feita considerando-se o seu impacto em diferentes grupos sociais. Os
indicadores selecionados e calculados podem ser acessados pela Matriz
de Indicadores. Estão baseados em dados dos sistemas nacionais de
informação, censo demográfico e pesquisas de base populacional,
cobrindo, sempre que possível, a partir de 1998, com atualizações
anuais.
Veja, abaixo, a opinião dos especialistas sobre o Índice de Desempenho do SUS (IDSUS 2012):
Antônio Ivo de Carvalho,
diretor da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
"A iniciativa de avaliar o desempenho do SUS é excelente, mas a
iniciativa de ranquear é péssima. Para ranquear, é preciso ter
indicadores sintéticos, e é praticamente impossível reduzir a um
indicador sintético os 24 indicadores que foram selecionados com base em
um estudo prévio da Fiocruz. Dependendo de como se agregam os
indicadores, eles vão dar resultados finais diferentes. O próprio
Pro-Adess é fruto de uma oposição da Fiocruz, da ENSP e do Icict - duas
unidades técnico-científicas da Fiocruz - a um ranqueamento feito pela
OMS no início dos anos 2000. Foi criado um grupo aqui na Fiocruz que
refez a metodologia e gerou uma crítica pesada ao ranqueamento da OMS,
que acabou desistindo do ranking. O Pro-Adess, a metodologia da Fiocruz, foi elaborado a partir dessa crítica. A sua aplicação para comparar municípios gera distorções inevitáveis. É obvio que o Rio de Janeiro não é a pior capital do país em termos de saúde pública, só para citar um exemplo.
O Icict criou a metodologia de usar parâmetros de desempenho, não para
ranquear. Porque comparar um município que tem cinco mil habitantes e um
que tem cinco milhões, obviamente, é um absurdo, porque gera
distorções, porque os indicadores terão comportamentos diferentes. O
próprio Ministério, que aplicou nos municípios os indicadores criados
pelo Pro-Adess, fez uma síntese do indicador. A metodologia do Pro-Adess
para avaliação de desempenho de municípios serve para investigar e
formular políticas para a superação das dificuldades em municípios
singulares e não para compará-los. O resultado no ranqueamento não condiz com a realidade".
José Noronha, diretor ad-hoc do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES)
e médico do Instituto de Comunicação e Informação Científica
e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz)
"Parte da tecnocracia do Ministério da Saúde acaba de brindar a
sociedade brasileira com um disparate metodológico a título de atender a
fome do chamado 'ranqueamento', que frequenta com avidez uma parte da
grande mídia brasileira. E, pior, pretendendo se constituir num processo
de pontuação isento de contaminação política e ideológica. Diz o
Ministério que se baseou teoricamente no projeto Desenvolvimento de
Metodologia de Avaliação do Desempenho do Sistema de Saúde Brasileiro,
projeto liderado pela Fiocruz e pela Abrasco. Ao contrário do que diz o
Ministério, o Pro-Adess foi desenvolvido justamente para se opor à
proposta de utilização de indicadores compostos ou agregados para
hierarquizar países, que foi empregado pela Organização Mundial de Saúde
para produzir seu mal-sinado Relatório Mundial de Saúde de 2000,
rejeitado pelo Brasil e por toda a comunidade acadêmica séria, nacional e
internacional, que se manifestou nos anos imediatamente seguintes à sua
divulgação.
A proposta central é de que a saúde é multidimensional e deve ser
avaliada matricialmente e não somando variáveis de dimensões diferentes
para chegar a um índice único. E, ainda pior, em corte transversal, sem
levar em conta a evolução de cada uma das variáveis ao longo do tempo. O
IDSUS soma mortalidade infantil com acesso, taxas de cesarianas,
frequência de consultas pré-natais, com cobertura nominal de PSF e mais
outros tantos, para chegar ao tal indicador único e classificar estados e
municípios. O resultado não podia ser outro. Atribui ao SUS uma nota
medíocre desprovida de significado lógico, que foi logo embalada pela
grande imprensa como prova contundente de seu fracasso. O Rio de Janeiro tira a nota mais baixa entre as capitais. Qualquer observador pouco atento rapidamente comprovará a falácia da classificação. Não é coisa séria. Felizmente, o tempo e a realidade se encarregarão de sepultar na poeira tão funesta iniciativa".
Célia Almeida, pesquisadora do Departamento de Administração
e Planejamento em Saúde da ENSP
"A definição de indicadores de avaliação de desempenho do SUS é
importante, uma vez que necessitamos de medidas que possam orientar a
solução de problemas que, sabemos, existem no sistema, e não são poucos.
Temos um país muito heterogêneo, com desigualdades expressivas entre
regiões, estados e municípios e, portanto, com diferentes redes de
serviços e capacidades para atender a demanda e as necessidades de saúde
da população. A situação se agrava ainda mais na atenção especializada e
hospitalar. Entretanto, metodologias de avaliação de desempenho são
bastante complexas, pois é preciso avaliar diferentes dimensões, que
articulam necessidades (estado de saúde, determinantes da saúde) com o
desempenho dos serviços propriamente ditos, que, por sua vez, também têm
diferentes dimensões para ser avaliadas (características do sistema e
provisão/ prestação de serviços). Além disso, cada uma dessas dimensões
exigem indicadores específicos.
Sendo assim, não se recomenda o uso de indicadores compostos (ou
sintéticos), como foi definido pelo Ministério da Saúde. Do ponto de
vista metodológico, o índice composto pode levar a distorções e avaliações equivocadas.
Aliás, é importante lembrar que nunca foi proposta do Pro-Adess,
elaborado pela Fiocruz, esse tipo de indicador. Ao contrário, o
Pro-Adess surge exatamente na esteira da discussão crítica à metodologia
de avaliação de desempenho dos sistemas de saúde proposta pela OMS. De
qualquer forma, é importante abrir o debate em nível nacional sobre a
avaliação de desempenho do SUS, sobretudo num momento em que a aprovação
da regulamentação da Emenda Constitucional 29, sem o necessário aumento
dos recursos federais, e os cortes orçamentários, principalmente na
saúde, evidenciam a falta de prioridade da saúde, assim como a falta de
visão do governo sobre o papel do nível federal, seja na superação dos
gargalos que dificultam a operação do SUS, seja na superação das
desigualdades, sobretudo numa república federativa continental como o
Brasil. Espero que a divulgação desse índice cumpra pelo menos esse
papel".
Maria Alicia Ugá, pesquisadora do Departamento de Administração
e Planejamento em Saúde (Daps/ENSP) e uma das participantes do Pro-Adess
"O Ministério tomou como marco teórico o Pro-Adess, mas, na realidade,
a equipe do Pro-Adess, desde o início dos anos 2000, criticou
indicadores sintéticos (ou compostos) de desempenho de sistemas de
saúde, que pouco dizem ao gestor sobre os problemas que afetam o SUS. O
Ministério da Saúde tomou alguns indicadores propostos pelo Pro-Adess
para construir um indicador sintético de desempenho, que não corresponde exatamente a nossa proposta.
Na nossa matriz analítica, nós contemplamos várias dimensões do
desempenho, analisadas separadamente a partir de vários indicadores por
nós propostos".
Valcler Rangel - vice-presidente de Ambiente,
Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz
"Os indicadores de avaliação são de grande importância para o sistema de
saúde. Mas o Ministério da Saúde tem trabalhado com um conjunto de
indicadores extremamente extensos e fragmentados para a avaliação do
SUS, incluindo indicadores voltados para questões epidemiológicas, para
prestação de serviço, para o acesso etc. Utilizados de forma
fragmentada, eles acabam não ajudando muito na construção e na
atualização de informações para o SUS. Três aspectos são passíveis de
revisão: primeiro, o ranqueamento, que pode cometer injustiças, pois
estamos falando de um sistema, de um conjunto de variáveis, e não apenas
de um município isoladamente, por exemplo; segundo, a má utilização
política desse tipo de resultado, principalmente em ano eleitoral, que
pode jogar a discussão para o campo do debate superficial; e o terceiro
aspecto, que é a parte mais profunda da questão, é achar que dessa forma
vai mostrar se o sistema está bom ou ruim. Não dá para negar que esse
indicador revela fragilidades do sistema, que precisam ser observadas
para uma possível revisão junto à comunidade acadêmica, aos gestores,
profissionais de saúde, sociedade. Em relação à base teórica do
indicador, ela vem passando por um processo de formulação muito grande
dentro do Pro-Adess, desenvolvido pela Fiocruz, e isso precisa ser
levado em consideração. Mas o sistema precisa dessa avaliação e também
que ela se repita em outros momentos.
Lígia Bahia, vice-presidente da Associação Brasileira
de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco)
"Considero que os esforços para estabelecer sistemas de avaliação são
sempre bem-vindos. E não têm sido poucos e tampouco superficiais os
passos que o Brasil deu para construí-los, mantê-los e aprimorá-los. Até
agora, vínhamos avançando em análises com os indicadores existentes e
procurando identificar lacunas nos sistemas de avaliação e superá-las.
As estratégias para implementar sistemas de avaliação vinculados aos
processos de tomada de decisão incluem o uso combinado de indicadores
construídos a partir do relacionamento de dados de bases administrativas
e inquéritos populacionais para diferentes dimensões dos sistemas de
saúde e esferas de governo.
O IDSUS rompeu com essa tradição e nos obriga a voltar a enfrentar os
problemas de homogeinização de indicadores compostos. Para quem esteve
às voltas com esse embate no plano internacional (no momento em que o
sistema privatizado de saúde da Colômbia foi considerado superior ao
SUS) trata-se de um retrocesso. Os resultados divulgados não deixam dúvidas sobre as inconsistências do indicador. Afirmar
que o acesso e a efetividade do SUS são piores em cidades do sul
maravilha representa um aplainamento de contradições inaceitável. A
Abrasco está tentando organizar um seminário para elaborar um
posicionamento. As principais preocupações são: o acoplamento do IDSUS,
com a transferência de recursos e com as inferências espúrias sobre o
SUS estabelecidas a partir do IDSUS".
Marilene Castilho, chefe do Departamento de Administração
e Planejamento em Saúde (Daps/ENSP)
Sem entrar no mérito da metodologia da pesquisa e da validade de se
construir um indicador composto para se avaliar uma realidade tão
complexa, a divulgação da pesquisa coloca em cena a situação dramática
da assistência à saúde no Estado do Rio de Janeiro e particularmente em
sua capital. A baixa qualidade da assistência e os graves problemas de
acesso aos serviços de saúde no Rio de Janeiro tem sido amplamente
demonstrados por vários estudos de abordagens metodológicas diversas.
O DAPS, inclusive, lançou recentemente um livro reunindo trabalhos de
vários pesquisadores sobre o SUS no nosso estado, onde se destacam,
entre outros fatores condicionantes, a fragmentação e desorganização do
sistema de saúde, a fragilidade dos mecanismos de gestão - especialmente
no que se refere à coordenação e regulação - a precarização da força de
trabalho, deficiências no controle social e uma história
político-institucional do Estado do Rio de Janeiro marcada seriamente
pelo fisiologismo e clientelismo políticos e pela corrupção.
Paralelamente a estes problemas (ou melhor, de modo indissociável a
estes problemas), venho apontando, há algum tempo, a crescente
"banalização" da dor e do sofrimento alheios na dinâmica mais ampla de
nossa sociedade atingindo, com especial intensidade, os serviços de
saúde. Particularmente tenho podido estudar esses processos em alguns
serviços de saúde no Rio de Janeiro, especialmente em hospitais,
destacando- se, por exemplo, a apatia e omissão dos profissionais, o
descuido ou ainda a falta de respeito, de solidariedade e de ética na
relação entre profissionais de saúde e entre estes e os usuários dos
serviços.
Tal situação não é passível de ser revertida por intervenções
prescritivo- normativas. O saldo destes processos se traduz em
sofrimentos, sequelas e mortes que poderiam ter sido evitados. A
complexidade deste quadro e de suas causas requer ao mesmo tempo
humildade para reconhecermos nossa baixa governabilidade sobre esses
processos e um grande esforço para revermos nossos modelos e métodos de
gestão e de produção de conhecimento.