Gestão do SUS: o que fazer?


por Francisco Batista Júnior, Representante da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social da Central Única dos Trabalhadores (CNTSS-CUT) no Conselho Nacional de Saúde. Farmacêutico concursado da Secretaria de Estado da Saúde do Rio Grande do Norte

Mesmo levando em consideração a conquista histórica que significa o Sistema Único de Saúde (SUS) do nosso país, devemos ter muito claro as enormes dificuldades que significam a sua implementação dado a nossa história de tratamento do estado com relações de fisiologismo, patrimonialismo, loteamento e privatização por grupos e corporações organizadas, como também de um financiamento e um modelo de atenção equivocados.

Assim, se por um lado temos um sistema com significativos avanços e que tem sido de uma importância incomensurável para toda a população brasileira, de outro há ainda gargalos que são produtos de toda essa nossa cultura e que necessitam de um tratamento correto e sintonizado com os princípios da Reforma Sanitária.

MODELO DE ATENÇÃO E FINANCIAMENTO

A nossa prática corrente tem sido do tratamento da doença em detrimento de ações que possibilitem a promoção efetiva da saúde. Quando analisamos o SUS, nos seus 20 anos, percebemos que apesar de importantes avanços pontuais e de relevância e impacto no contexto sócio-epidemiológico, continuamos presos a uma lógica focada nos medicamentos, nos leitos hospitalares, medicocêntrica e mais recentemente nos exames de alto custo.

O descompromisso com uma efetiva e agressiva prática de promoção da saúde inclusive com ações intersetoriais perenes e coordenadas, tem significado a manutenção de um quadro típico de países miseráveis com incidência de moléstias que de há muito não mais fazem parte do mundo civilizado, onde a dengue é um exemplo clássico. Ao mesmo tempo, também gerado uma demanda cada vez mais crescente por tratamentos cada vez mais especializados e de custos cada vez mais elevados, colocando em xeque não só a capacidade de financiamento, mas o próprio sistema como um todo.

Não temos programas que possibilitem diagnóstico precoce e um acompanhamento racional de diabetes, hipertensão, oftalmologia, saúde mental, assistência farmacêutica, oncologia, saúde bucal e outros e somos obrigados, em conseqüência, a arcar com os desumanos e insustentáveis tratamentos de hemodiálise, cirúrgicos, transplantes, intoxicações e câncer, só para citar alguns.

Em função disso é também fundamental alterar a forma de financiamento global do sistema, superando a contraproducente lógica verticalizada e de pagamentos por procedimentos, passando-se a definir a proposta orçamentária de acordo com as necessidades de cada local, pactuando-se metas a serem atingidas e definindo os correspondentes e permanentes processos de acompanhamento e avaliação.

Assim sendo, o Pacto em defesa do SUS e o Prontuário Eletrônico, configuram-se como instrumentos estratégicos na viabilização dessa nova lógica, contendo todas as condições de por exemplo, possibilitar a regionalização e a responsabilização plenas.

RELAÇÃO PÚBLICO/PRIVADO E PRINCIPAL X COMPLEMENTAR

O Estado brasileiro sempre teve a prática recorrente de disponibilizar o serviço de saúde ao cliente através da contratação de terceiros, ao invés de estruturar a sua própria rede de serviços. Esse processo, que torna a saúde a exploração de um dos maiores negócios econômicos do país e que movimenta anualmente R$ 190 bilhões, foi largamente intensificado durante o período de implantação do SUS. Isso se deveu ou porque a lógica de financiamento estabelecida via pagamento por procedimentos tornava essa opção politicamente mais rentável e rápida, ou porque o gestor mantinha alguma relação direta com prestadores de serviços do setor privado, uma situação que sabemos bastante comum no Sistema.

Na medida em que o Poder Público desestruturava seus serviços especializados, substituindo-os por serviços privados contratados, criava o caldo de cultura e as condições necessárias para o estabelecimento e desenvolvimento da saúde suplementar que nos últimos anos cresceu a níveis bem acima do crescimento geral do país, beneficiada também pelo incremento da economia, principalmente no último governo.

Ao mesmo tempo e num processo de auto flagelação, o SUS estimulava e drenava seus profissionais especialistas para esse mesmo setor privado que se alavancava as suas custas, fosse diretamente através do seu financiamento ou indiretamente por meio do estímulo a estruturação de serviços e da imunidade tributária.

Esses trabalhadores passaram então a dispor de um leque bem mais ampliado e variado de opções para seu exercício profissional, e a terem outra rotina de trabalho baseada numa remuneração diferenciada, individualizada e por procedimento realizado, e não mais no exercício profissional em jornadas com expedientes e plantões predeterminados.

Por essa razão esses profissionais têm ignorado, e a continuar a atual lógica continuarão sempre a ignorar o SUS, que será por eles utilizado exclusivamente como instrumento de formação e afirmação profissional e de rápido retorno financeiro. Por isso têm deixado refém o SUS e a população brasileira, se negando em muitos casos a prestar serviços ao sistema de maneira formal e de acordo com a legislação.

Profissionais que deveriam se formar para servirem a população, optam por servirem-se dela. Preferem se organizar por meio de instrumentos de intermediação de mão de obra para, através deles, auferirem remuneração bastante diferenciada e com freqüência acima dos valores praticados pelo mercado. Um mercado diga-se, que o próprio SUS fomentou, estimulou e alimentou.

Dessa forma, dramaticamente, o SUS retroalimenta diretamente a carência de determinados profissionais na sua rede própria, quando se dispõe a financiar a remuneração de forma bastante diferenciada desses mesmos profissionais através dos serviços por eles prestados na rede privada contratada e conveniada.

Essa opção político/econômica/ideológica tornou a população brasileira dependente e em muitos casos totalmente refém do setor privado/contratado, principalmente nos serviços de referência e especializados.

Isso significa na prática admitir uma prestação de serviços que tem como norma o estabelecimento de um limite de procedimentos a ser disponibilizado pelo prestador, que por sua vez tem relação direta com a capacidade de financiamento público. Numa lógica de mercado, portanto de um interminável debate de valores a serem praticados e honrados pelo ente público, e de um subfinanciamento que é a regra, a população é submetida a uma crise praticamente ininterrupta, traduzida no não-atendimento da demanda crescentemente reprimida (em função da conjunção da falta de prevenção com os limites e tetos financeiros estabelecidos) e das constantes interrupções nos atendimentos motivadas pela disputa de valores e de poder.

Portanto cumpre-nos e é lícito afirmar, que o crescimento do setor privado da saúde além dos limites da complementariedade estabelecidos pela Constituição Federal, é incompatível com a plena afirmação e consolidação do SUS. É impossível termos determinados profissionais à disposição do Sistema uma vez que eles preferirão sempre a relação mais cômoda e mercantilizada com o setor privado, assim como também jamais teremos orçamento suficiente para financiar a compra de serviços na lógica de mercado.

RELAÇÕES DE TRABALHO

Com o processo de municipalização deflagrado a partir da década de 90, os estados da Federação e o Governo Federal praticaram uma política de absoluta desresponsabilização com a contratação e valorização dos trabalhadores para a rede SUS. Ao mesmo tempo, a “Reestruturação Produtiva” estimulou a precarização nas relações de trabalho através dos baixos salários, da multiplicação de gratificações e do culto à mercantilização e da múltipla militância, ou seja, o exercício do trabalho em vários locais e instituições, gerando a desvinculação profissional com o serviço.

Os municípios ficaram sobrecarregados com a tarefa de contratação dos trabalhadores e submetidos em conseqüência, a situações insustentáveis. Com as limitações financeiras e a lógica prevalente no plano federal, passaram a estabelecer relações de trabalho totalmente precarizadas como contratos temporários, cooperativas, código 7 e outros.

Em conseqüência do processo de mercantilização estabelecido, os gestores passaram a instituir remunerações diferenciadas para os trabalhadores em geral, num processo que promoveu desestímulo e falta de compromisso bastante razoável de parte considerável do corpo de profissionais.

Ainda em consonância com a mercantilização instituída e com a demanda crescente pela especialização, os municípios ou foram obrigados ou simplesmente passaram então a se submeter às exigências de corporações fortemente organizadas, principalmente em cooperativas.

Premidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, no nosso entendimento flagrantemente inconstitucional em relação à saúde, ou mesmo por opção político/ideológica, como muitas vezes ficou evidenciado, gestores realizaram um vigoroso processo de terceirização na contratação dos trabalhadores.

Por fim, também por opção político/ideológica e ferindo frontalmente os dispositivos constitucionais, foi deflagrado em todo o país o processo de privatização da Gestão e da Gerência dos serviços SUS, através das Organizações Sociais, OSCIPS, Fundações e outras, que exercem seu papel com a mais ampla liberdade à revelia dos limites estabelecidos pela legislação bem como dos princípios do SUS.

Ressalte-se que a contratação de mão de obra através de “cooperativas” bem como a entrega de serviços públicos a administração de empresas privadas como Organizações Sociais, OSCIPS e outros “parceiros”, são apresentadas como formas legais de cumprimento da legislação do SUS no quesito referente à complementariedade privada garantida na lei.

Na verdade o que acontece, se não for por má fé, é uma equivocada interpretação do Art. 24 da lei 8.080/90 que de forma absolutamente clara estabelece que “Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada”.

É impossível para nós entendermos a intermediação de mão de obra e a terceirização da administração dos serviços do próprio SUS, que dentre outras coisas burlam violentamente o dispositivo constitucional do concurso o público como única forma de acesso ao serviço público, como efetivos serviços assistenciais complementares.

De maneira insofismável, cooperativa de trabalhador é mão de obra, força de trabalho que deve ser contratado via concurso público ou contratos temporários como manda a legislação. Organizações Sociais, OSCIPS e outros “parceiros privados” como administradores de bens públicos, são gerentes/gestores e não serviços assistenciais de saúde disponibilizados no atendimento da população, disso não pode haver dúvidas.

Sob esse aspecto, a mesma lei 8.080/90 estabelece nos seus artigos 17 e 18 a competência das direções estaduais e municipais do SUS de gerirem os serviços que estão sob sua esfera administrativa. Portanto, e é a lei orgânica do SUS que afirma isso, a gerência dos seus serviços não pode ser delegada a terceiros.

Temos então a conclusão de que, através de um processo pensado, coordenado e elaborado politicamente, o SUS foi paulatinamente desconstruído, sua legislação fartamente solapada e seus princípios violentamente desrespeitados, sempre com o discurso fácil e oportunista da necessidade de vencer a burocracia e de dar respostas rápidas e imediatas a população que diziam e dizem, “não pode esperar”.

Na verdade o que aconteceu de fato como sempre afirmamos e hoje constatamos com sobras, é que foi colocado em prática um projeto de transferência dos recursos financeiros e do patrimônio do SUS para grupos políticos e econômicos e corporações privadas, de acordo com a nossa cultura e a nossa história. Tudo ocorreu diga-se, sob um assustador, constrangedor, vergonhoso e comprometedor silêncio daqueles que tinham dentre outras, a tarefa de fiscalizar e acompanhar o sistema, zelando pelo respeito à legislação e as normas, particularmente o Ministério da Saúde e o Poder Judiciário.

A contratação de Organizações Sociais, OSCIPs e congêneres, assim como das “cooperativas” violentam os princípios constitucionais da legalidade, moralidade e impessoalidade, solapam o instrumento jurídico do concurso público como única forma de acesso ao serviço público, destratam as leis de licitação e de Responsabilidade Fiscal dentre outras e, mesmo assim, têm tido a conivência de vários Tribunais de Justiça pelo país a fora.

Duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade que questionam as Organizações Sociais como gerentes de serviços públicos, se encontram a mais de dez anos no Supremo Tribunal Federal sem uma manifestação definitiva daquele egrégio colégio. Enquanto isso, o processo de desconstrução avança em todo o país em governos das mais variadas matizes ideológicas. Afinal, como afirmam, enquanto o Supremo Tribunal Federal não se manifesta, não podem ser acusados de estarem cometendo ilicitudes.

Por outro lado, o Ministério da Saúde tem, ano após ano, financiado diretamente a contratação de serviços privados em substituição a rede pública – invertendo o ditame constitucional da complementariedade privada e portanto descumprindo a lei – bem como a entrega de serviços públicos para a administração por empresas privadas, como são os casos mais recentes das Unidades de Pronto Atendimento em Pernambuco, Rio Grande do Norte e outros estados.

Esse movimento pode ser interpretado como opção política, o que significaria um grande equívoco estratégico e desrespeito às decisões soberanas das Conferências e dos Conselhos de Saúde, ou simples omissão e conivência com a ilegalidade. Tanto num caso como no outro, é muito difícil para nós identificar a opção mais grave.

A verdade é que o SUS foi transformado no maior balcão de negócios envolvendo a coisa pública no nosso país, negócios privilegiados, com financiamento garantido e sem qualquer risco como são os casos dos contratos com Organizações Sociais, OSCIPs e outros “parceiros privados”.

Os milhares de pessoas que hoje sofrem nas filas de espera por um procedimento que nem sempre é tão especializado assim, são vítimas desse irresponsável e ilegal processo de privatização do sistema que, está provado, é estatística, matemática e economicamente, absolutamente impossível de ser financiado em sua plenitude.

Aliás, e exatamente em função da inviabilidade da saúde obedecendo à lógica de mercado, nos últimos anos e em conseqüência da demanda que cresceu significativamente, mesmo os Planos de Saúde, que diferentemente do SUS, sabemos bem não se pautam pela universalidade nem pela integralidade, estão enfrentando cada vez mais dificuldades em arcar com as suas responsabilidades perante os seus segurados.

Óbvio que num quadro como esse, o Sistema Único de Saúde fica mortalmente ferido em pilares fundamentais, sua força de trabalho e sua gestão, necessitando, portanto, de alterações que promovam a correção de rota devida.

FUNDAÇÃO “ESTATAL” DE DIREITO PRIVADO OU EBSERH NO MEC

A proposta de fundação “estatal” é muito corajosa quando recordamos o nefasto histórico de empreguismo, utilização político/partidária e de corrupção que caracteriza as Fundações no Brasil, inclusive nas atuais como nos mostra o noticiário freqüente da mídia. Alem disso, tem para nós do Conselho Nacional de Saúde um grave problema na sua origem: foi gestado entre quatro paredes, sem que em nenhum momento os dois principais interessados – usuários do sistema e trabalhadores – fossem ouvidos. Assim, foi necessário o Conselho Nacional de Saúde pautar o tema para que pudesse ser ouvido pelo governo, que mesmo assim enviou o Projeto para o Congresso Nacional apesar de posição contrária do colegiado maior do Controle Social do SUS no nosso país.

Apesar de ter sustado a tramitação do projeto de lei em função da ampla mobilização nacional contra a proposta, deflagrada pelo Conselho Nacional de Saúde, o Governo Lula não desistiu da idéia que dessa vez faz parte de um projeto maior denominado de Lei Orgânica da Administração Pública, elaborada junto ao Ministério do Planejamento e que deve ser enviado ao Congresso Nacional.

Além disso, e no último dia do seu mandato, o Governo Lula em outro momento profundamente infeliz criou, vinculada ao Ministério da Educação e através de Medida Provisória, a fundação estatal de direito privado piorada, com o nome de Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares ou EBSERH pasmem, como sociedade anônima. Nos chama a atenção nesses processos políticos, o contraditório método autoritário praticado pelo governo em áreas tão vitais e com um importante histórico de participação popular e construção coletiva.

Sem entrar no mérito jurídico da proposta, onde há contestações em profusão, inclusive uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, os defensores das fundações estatais de direito privado afirmam que “somente atividades próprias ou típicas do estado necessitam de determinadas proteções, como a da estabilidade, que resguarda o servidor de influências que o impeçam do exercício de suas funções públicas. O exercício de atividades que também o mundo privado se ocupa, as quais muitas vezes, até complementam os serviços públicos, como é o caso da saúde, não necessitam da mesma proteção como a fiscalização, regulamentação e controle.”

Os mesmos atores defendem que a fundação tenha total autonomia e isenção tributária, não se sujeite aos limites de gastos com pessoal, impostos pela lei de Responsabilidade Fiscal, e não se submeta ao teto remuneratório. Um “coquetel” de boas promessas – umas nem tanto – sem antes, na opinião de juristas renomados, combinar com o texto constitucional. Portanto, teriam todas as possibilidades de “cooptar” determinados profissionais de acordo com os salários de mercado.

Escreveram o seguinte: “o conceito de postos profissionais, remunerados com base nos valores praticados no mercado concede maior eficácia e eficiência gerencial a essas organizações, além da possibilidade de cooptação e manutenção de quadros qualificados profissionais”. Sobre isso, afirmamos: pobre de um sistema de saúde que propõe cooptar profissionais, tendo como referência o mercado e não um processo mais amplo de valorização e de conseqüente convencimento!

No momento em que, com certeza, fazem inveja ao mais liberal pensador sobre relações de trabalho no setor público, eles propõem Planos de Cargos e Salários por serviço/fundação, um gesto tão ousado que não teve nem nos arautos do neoliberalismo atores com coragem suficiente para verbalizá-lo.

Afirmam com todos os pulmões, que o atual modelo de gestão, engessado e burocrático está morto. Perguntamos: a qual modelo de gestão se referem? Se é ao modelo majoritário e predominante sobre o qual não temos nenhuma ingerência ou participação e que contra os princípios do SUS se fundamenta no fisiologismo, na troca de favores políticos, na ocupação dos cargos a partir de interesses pessoais, corporativos e políticos, em detrimento da competência, da profissionalização e das relações compromissadas, nós concordamos. Aliás, sempre fomos contra e o denunciamos, uma vez que fere frontalmente as normas do SUS. Afinal, não é esse modelo que o SUS preconiza.

Por fim, ficam possessos quando se afirma que fundação de direito privado é um processo de privatização. Afirmam que a fundação “é do Estado, pública e é controlada pelo governo”, como se privatização se resumisse ao conceito clássico de venda de uma empresa pública no mercado formal.

Na impossibilidade legal da privatização clássica, na saúde historicamente ela tem acontecido de maneira mais elaborada e perversa. O patrimônio continua sendo público, mas a sua administração e literalmente, a sua exploração, é feita por grupos políticos organizados que o gerencia de acordo com os seus interesses e para atender as suas demandas políticas, particulares e coletivas. É para esse fim que no Brasil tem se constituído as fundações. Ressalte-se que mesmo as fundações de direito público como de resto e para sermos honestos, basicamente toda a estrutura de serviços públicos independente de serem ou não fundações, são em maior ou menor grau, privatizadas dessa maneira.

A questão que está em debate em relação às fundações estatais de direito privado é que sem a obediência aos ditames da legislação e dispondo de toda a autonomia que se desenha, o processo de espoliação política do patrimônio público torna-se mais farto, incontrolável e danoso ao interesse da população. Disso a nossa experiência não deixa qualquer margem de dúvidas. E essa tem sido sim na nossa história pregressa, a forma mais vil e desonesta de privatização do estado brasileiro.

As nomeações clientelistas e indicações políticas são mantidas e fortalecidas, os salários diferenciados para os privilegiados, garantidos, e os interesses patrimonialistas são plenamente atendidos pela gestão “autônoma e diferenciada” à margem do controle social.

A proposta de fundação estatal de direito privado está na verdade tão desmoralizada, que até estados que a criaram através de leis, ou não implementaram como são os casos do Rio de Janeiro e Pernambuco ou simplesmente aderiram às Organizações Sociais, como são os casos exemplares dos próprios Rio de Janeiro e Pernambuco e, surpresa maior para nós, a Bahia. Isso é no mínimo estranho enquanto seus defensores faziam a sua apologia como alternativa concreta exatamente às Organizações Sociais, até então por eles consideradas ilegais e “desconstrutoras” do SUS.

Pode ser que se sintam agora mais encorajados com o péssimo exemplo da criação da EBSERH/MEC no plano federal e se o Poder Judiciário continuar silente como vem acontecendo durante todos esses anos.

A REFORMA SANITÁRIA E A GESTÃO DO SUS

O SUS enfrenta o seu mais difícil momento na sua curta história, está definitivamente em xeque e as dificuldades apontadas, que são reais, são fruto de todo esse processo de desconstrução jurídica e política.

É fundamental afirmarmos que nenhuma forma de gestão no SUS dará os resultados que esperamos e necessitamos se num curto prazo não fizermos o enfrentamento com o atual modelo de atenção, que alimenta inexoravelmente a demanda pelos procedimentos especializados e de alto custo, e não fortalecermos a rede estatal SUS, de modo a diminuirmos sobremaneira a dependência do setor privado contratado, eixos vitais onde as corporações e grupos econômicos organizados se alimentam e se fortalecem.

Necessitamos também ampliar o financiamento do SUS via regulamentação da EC 29 nos termos do PLP 01/03 e alterar a atual lógica, substituindo o equivocado pagamento de programas verticalizados e por procedimentos pelo estabelecimento de metas de acordo com a realidade e as necessidades de cada local.

Por outro lado, defender fundação “estatal”, afirmando que Saúde não é atividade típica de estado e que não necessita de fiscalização, regulamentação e controle, que o privado é complementar e que com salários de mercado cooptará determinados profissionais, é de uma violência com os princípios da Reforma Sanitária e desconhecimento da legislação (Art.197 da Constituição Federal) e da realidade do SUS, que não podemos conceber num debate onde o objetivo seja o fortalecimento do Sistema.

Além disso, a postura agressiva dos defensores da proposta, que se identificam como progressistas e históricos da Reforma Sanitária, ao mesmo tempo em que saem acusando os contrários de corporativistas, de que não têm propostas e de conivência com as distorções que são reais, se não é má fé, apenas revela a falta deliberada de debates com o contraditório e esconde um fato contundente e elucidativo: a proposta de fundação “estatal” unifica sim todos os setores conservadores anti-SUS do nosso país e que se identificam perfeitamente com a mesma, mas divide claramente toda a militância da Reforma Sanitária que se tivesse sido ouvida teria apresentado alternativas como as que seguem.

1) SOBRE AUTONOMIA E “ENGESSAMENTO”

Diante da frágil argumentação que a Fundação “Estatal” promoveria autonomia e flexibilidades gerenciais e administrativas para bem gerir os serviços públicos de saúde, ante um estado “pesado”, “burocrático” e “engessado”, citamos a nossa Carta Maior que não deixa qualquer dúvida a respeito do tema, bastando apenas regulamentá-la sem, contudo, a necessidade de criação de qualquer outro instrumento jurídico.

Constituição Federal, art. 37, Inciso XXI, § 8º

A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha como objetivo a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade, cabendo à lei dispor sobre:

I – o prazo de duração do contrato;

II – os controles e critérios de avaliação de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidade dos dirigentes;

III – a remuneração de pessoal.

2) “QUEM TEM MOTIVAÇÃO PARA CONTRATAR DEVE TER PARA DEMITIR”

Frente à argumentação conservadora, recorrente e insustentável de que a estabilidade do trabalhador em saúde é um mal e beneficia quem não quer trabalhar e que o trabalhador da saúde deve ter o mesmo tratamento que os trabalhadores do sistema financeiro ou do ramo petroquímico estatais, os quais, diga-se enfaticamente, merecem todo o nosso respeito, estranhamos e lamentamos a comparação rebaixada, desqualificada e oportunista com quem trabalha com a vida do seu semelhante e que necessita da estabilidade no emprego para a garantia plena do exercício profissional e do vínculo efetivo e afetivo, inclusive, profissional-serviço-cliente.

Lamentamos também que não sejam pautados os reais interesses políticos, fisiológicos e corporativos da atual majoritária lógica de gestão, que inviabilizam o sistema e que além de não serem enfrentados, também saem fortalecidos pela fundação “estatal”, que estabelece dentre outros, a contratação e demissão de trabalhadores de acordo com a, tentemos entender, “necessidade de cada fundação”. Para nos contrapormos a isso recorremos outra vez à legislação vigente, o Regime Jurídico Único, que para qualquer bom entendedor é claro, cristalino e insofismável e que, sabemos muito bem, apenas necessita ser cumprido.

REGIME JURIDICO ÚNICO – Lei 8.112, art. 127

São penalidades disciplinares:

advertência; suspensão; demissão; cassação de aposentadoria ou disponibilidade; destituição de cargo em comissão; destituição de função comissionada.

Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos:

crime contra a administração pública; abandono de cargo; inassiduidade habitual; improbidade administrativa; incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição; insubordinação grave em serviço; ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem; aplicação irregular de dinheiros públicos; revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo; lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio pessoal; corrupção; acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas; transgressão dos incisos IX e XVI do art. 117.

Dessa maneira e no estrito cumprimento da legislação vigente, entre 2003 e outubro de 2010, o Governo Federal promoveu a demissão de 2.500 servidores. Foram 1.471 por uso indevido do cargo, 817 por improbidade administrativa e 257 por recebimento de propina. Tiveram a aposentadoria cassada 177 e 223 foram destituídos de cargos de confiança. Além disso, 243 foram expulsos por desídia, que são faltas leves agravadas pela repetição, e 406 por abandono de cargo. Essas punições alcançaram diretores, superintendentes, auditores e fiscais da Receita Federal, da Previdência e do Trabalho, procuradores e subsecretários de orçamento e administração.

Portanto, afirmar que a estabilidade é um mal em si que permite que trabalhadores não cumpram com sua função dela se beneficiando, é uma falácia; significa negar a responsabilidade que cabe a gestores incompetentes e descompromissados e atentar contra um direito que ao trabalhador do serviço público em áreas fundamentais deve ser considerado como sagrado, qual seja a não vulnerabilidade a governos que utilizam o exercício do poder violentando os princípios constitucionais da moralidade, da legalidade e da impessoalidade.

Assim mesmo, defendemos que esse processo deva ser aperfeiçoado com a inclusão de outros elementos pertinentes como por exemplo, a avaliação periódica.

3) MERCANTILIZAÇÃO DA FUNDAÇÃO ESTATAL X PROFISSIONALIZAÇÃO DO SUS

A atual forma de organização, estruturação e funcionamento do SUS, inclusive com uma nítida política de desvalorização e desestímulo salarial dos profissionais, além da lógica patrimonialista imposta por grupos políticos e corporações organizadas, promoveu não raro, gestões ineficientes e não resolutivas e uma efetiva e mortal, em se tratando de trabalho em saúde, mercantilização nas relações de trabalho.

Reiteramos energicamente que esta lógica não será revertida sem o fortalecimento do setor público estatal com vistas à superação da prática de estabelecimento de tetos financeiros e pagamentos de procedimentos, e sem a priorização da prevenção executada pela equipe multiprofissional em saúde, com a finalidade de estancar o aumento geométrico da demanda pelos procedimentos especializados e de alto custo.

Fundamental para nós nesse momento emergencial é não implantar nenhuma proposta que possa institucionalizar, oficializar e tornar um caminho sem volta esse irracional e insustentável processo de mercantilização, que propõe o benefício de uns poucos em detrimento da grande maioria dos profissionais, como são os casos da fundação “estatal”e da recente Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH. Nesse sentido, defendemos outra vez, que a atual legislação, totalmente sintonizada com os princípios da Reforma Sanitária, possa efetiva e definitivamente ser implementada.

Faz-se necessário, então:

- Profissionalização da gestão e da gerência dos serviços da rede SUS, através da regulamentação do inciso V do Art. 37 da Constituição Federal que estabelece que “as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento”;

- Um amplo Programa Nacional de reestruturação e fortalecimento da rede pública estatal nas três esferas de governo e de relação interinstitucional, na perspectiva de viabilizar uma ação intersetorial permanente, com ênfase nas questões do emprego, renda e sua distribuição, combate a violência em todos os níveis, desenvolvimento sustentável, preservação do meio ambiente e uma proposta de acesso à educação pública radicalmente qualificada e democratizada;

- Concurso Público com estabilidade no emprego e avaliação permanente, fundamental para se contrapor ao processo de descompromisso, desvinculação e leilão de remuneração profissional, na perspectiva de construir uma relação que tenha como eixo fundamental o vínculo profissional-serviço-cliente;

- Plano de Cargos, Carreiras e Salários, de acordo com as Diretrizes Nacionais do PCCS do SUS, pactuadas na Comissão Intergestores Tripartite e aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde. Diferentemente da proposta de PCCS por serviço, incorporada na fundação “estatal” e que desvaloriza, desestimula, desrespeita e desqualifica profissionais com a lógica de “salários de mercado”, a partir do privilegio de uns poucos em alguns serviços em detrimento da grande massa de trabalhadores, defendemos pisos salariais nacionais por nível de escolaridade, estímulo à dedicação exclusiva, interiorização e a qualificação, bem como a observância a situações específicas que hoje são demandadas em função da realidade estabelecida. Essas constituem medidas a serem implementadas na perspectiva da criação e implantação da carreira única do SUS como carreira de Estado, com base municipal e devidamente pactuada entre as três esferas de governo.

Quem trabalha com a vida das pessoas não pode e não deve ser submetido à “lógica de mercado”, que em se tratando de saúde e da vida das pessoas, é um conceito absolutamente anacrônico e incompatível com a Reforma Sanitária e com os princípios da ética e do humanismo.

- Responsabilidade tripartite pela contratação e remuneração da força de trabalho, a partir do diagnóstico da necessidade da equipe multiprofissional em todo o país e de concursos públicos nacionais com conseqüente inserção na Carreira Única do SUS;

- Formação, qualificação e perspectivas de desenvolvimento na carreira, através do projeto de educação permanente nas três esferas de governo de acordo com os seguintes dispositivos legais:

Art. 37, § 2 da Constituição Federal

“A União, os Estados e o Distrito Federal manterão escolas de governo para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, constituindo-se a participação nos cursos um dos requisitos para a promoção na carreira, facultada, para isso, a celebração de convênios ou contratos entre os entes federados.”

Art. 37, § 5º da Constituição Federal

Lei da União, dos estados, do Distrito Federal e dos Municípios poderá estabelecer a relação entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, Inciso XI.

Art. 27, Inciso I da Lei 8.080/90

“Organização de um sistema de formação de recursos humanos em todos os níveis de ensino, inclusive de pós-graduação, além da elaboração de programas de permanente aperfeiçoamento de pessoal.”

Art. 27, Inciso IV da Lei 8.080/90

“Valorização da dedicação exclusiva aos serviços do Sistema Único de Saúde.”

- Reestruturação curricular dos cursos universitários da área de saúde de modo a sintonizar a formação profissional com a realidade do país, com o SUS e suas necessidades, bem como instituir o Serviço Civil em Saúde na rede pública do SUS para todos os profissionais graduados, pelo prazo de um ano e Residência Multiprofissional como instrumentos de qualificação, convencimento, aperfeiçoamento, visibilidade e afirmação do trabalho multiprofissional, e atendimento das carências do sistema na área de Gestão do Trabalho.

- Gestão do Sistema e Gerência dos Serviços radicalmente democratizados, com a instituição de processos de profissionalização, de Conselhos Gestores e de outros espaços de contribuição e elaboração, que possibilitem o fim da ingerência político/partidária/fisiologista e a participação efetiva de trabalhadores e usuários nas decisões que digam respeito ao funcionamento dos serviços da rede SUS;

- Arguir a inconstitucionalidade (Art. 196 da CF) da Lei de Responsabilidade Fiscal para a área de saúde, de modo a possibilitar aos gestores a contratação dos profissionais necessários à viabilização do sistema, combatendo e eliminando a precarização nas relações de trabalho, bem como implementar o Pacto pela Vida, pelo SUS e de Gestão com ênfase na priorização do processo de regionalização e hierarquização dos serviços.

Alguém pode afirmar e já ouvimos de alguns defensores das fundações, que tudo isso vai demorar muito tempo e necessitamos de ações imediatas. A fundação “estatal” como também a recente EBSERH se tivessem respaldo legal, também demandariam para ser implementada, um tempo considerável inclusive para ser viabilizada sob os pontos de vista jurídico e financeiro. Além disso, se o SUS sobreviveu heroicamente a tantos ataques, não será um pouco mais de tempo de espera e de resistência a outro duro ataque que o inviabilizará. De outro lado, várias das propostas por nós aqui apresentadas, podem ser construídas imediatamente estando na dependência exclusiva de decisão política.

Entendemos dessa maneira que com decisão política, controle social, prática efetiva da democracia participativa e obediência à legislação vigente devidamente aperfeiçoada quando for o caso, sem a criação de qualquer outro instrumento jurídico, temos efetivas condições de implantação definitiva do SUS de forma totalmente sintonizada com os princípios da Reforma Sanitária no Brasil.