quinta-feira, 30 de junho de 2011

Regulamentação da Lei 8080: Um Decreto com 20 Anos de Atraso

por Gilson Carvalho, médico pediatra e de saúde pública

É muito cedo para uma avaliação mais profunda do Decreto publicado hoje pela Presidente Dilma e que pretende regulamentar a lei 8080. Na sequência de algumas leis tem-se a chance de ser editado um decreto mais detalhado que aprofunde os temas, detalhe-os e, compulsivamente não inove nem contrarie a lei ou outras leis. 

Isto não foi feito quando em 1990 foi publicada a Lei 8080 que regulamentava a Constituição Federal. Aqui se aplica como luva o popular “antes tarde, do que nunca”.

Adianto minha opinião: muita coisa boa, favorável ao desenvolvimento do SUS. Outras poderiam ser melhor colocadas e, assim sim, o pior: aquilo que por motivos equivocados, fui suprimido nas várias redações e ainda no corte da corte palaciana.

O mérito dos estudos e da primeira redação do Decreto foi de uma demanda do Temporão no Governo Lula. Padilha apenas deu continuidade e o finalizou – ato não muito comum nas mudanças de governo. Agora, como sempre, vão aparecer vários autores, mas, a primeira redação é da advogada-sanitarista Lenir Santos.  Depois houve o momento da escuta aonde chegaram reflexões e contribuições. 

Neste momento, retiraram-se capítulos essenciais e outros não tão importantes foram colocados. Tenho certeza de que não será unanimidade. Mas, como Decreto, existe a vantagem de que pode ser mais facilmente modificado.

Já vi gente que leu minutas anteriores e se irritou com determinados conceitos. Quando fui verificar a que se devia a crítica, vi que o Decreto estava apenas transcrevendo aquilo que já contava na lei e não havia sido percebido ou assimilado pelo crítico. É, sem dúvida o resultado do desconhecimento que se tem de questões essenciais da lei 8080! Assustam-se sem saber que já existia a determinação legal, só que descumprida.

Vou elencar abaixo alguns destaques preliminares começando por mostrar as inúmeras vantagens e conquistas:

  •      Definiu, aprofundou ou clareou conceitos essenciais ao sistema como exemplo: regionalização, hierarquização, região de saúde, rede interfederativa, protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, contratos entre os entes públicos, comissões intergestores.
  • Oficializou a Atenção Primária  como porta de entrada do SUS, e como ordenador do acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde.
  • Como novidade os Contratos Organizativos da Ação Pública ponto fulcral do Decreto e que se espera ponha fim ao profícuo das nobs, noas, pactos, compromissos inter e intra etc. etc.
  • Este ponto é a grande inovação e sem dúvida a fonte de inúmeras polêmicas e dos prós e contra. Se medida acertada em definitivo ou sujeita a alterações só o tempo dirá. O que não podia continuar existindo é uma profusão de portarias casuísticas e oportunistas incapazes de serem seguidas e sem nenhuma unidade entre elas.
  • Os contratos vão trabalhar com a organização do sistema a partir dos conceitos constitucionais e legais da rede pública regionalizada e hierarquizada com competências e responsabilidades solidárias e próprias de cada esfera de governo e não apenas delegadas.
  • As Comissões Intergestores tiveram uma maior legitimação agora em decreto o que apenas estava formalizado em portarias. Não tem possibilidade do sistema de saúde se organizar sem que haja um fora paritário das três esferas no âmbito nacional e nas duas no âmbito estadual. Dia virá em que as presidências destas reuniões serão rotativas tanto no âmbito nacional como estaduais. As funções das Comissões Intergestores foram aprofundadas e melhor explicitadas.
  • A prática tem que acompanhar este dispositivo. Já nos fartamos do autoritarismo de que quem está com o dinheiro dos três entes, se sinta no direito de decidir sozinho o que dele fazer, de que modo e ainda dizendo que tenha sido decisão tri ou bipartite.
  • Mapa de Saúde é uma nomenclatura nova para uma coisa que sempre se fez, mas sem sistematização e que é a descrição de todas as ações e serviços de saúde, públicos e privados, disponíveis em determinado território. Servirá, como expresso em outro local, para identificar as necessidades de saúde de cada local.
  • Quanto à rede regionalizada uma das questões fundamentais de avanço é quanto diz que a REGIÃO DE SAÚDE será a base de alocação de recursos. Se assim for é possível colocar fim a dois grandes problemas: melhor distribuir as regiões de saúde e melhorar a relação entre os municípios pequenos e os de referência que andam sempre em atrito devido à abrangência dos serviços. Espera-se que esta medida seja mais feliz que todas as iniciativas anteriores de POIs, PPIs e mais.
  • Outra novidade que também dará polêmica é a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde – RENASES, algo nunca regulado dentro do genérico sempre citado de “ações e serviços de saúde”. Regulação é função constitucional precípua do sistema de saúde.
  • Dentro da idéia da RENASES uma pactuação negociada das ações e serviços de saúde de responsabilidade de cada esfera de governo, seu financiamento e a possibilidade expansão deste rol com características estaduais e municipais.
  • A RENAME, já existente há vários anos está sendo aperfeiçoada com reforço sobre os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas. Também se disciplina melhor o acesso aos medicamentos em acordo com as novas diretrizes acrescentadas à lei 8080.
  • Por fim seria importante desnudar o que faltou ou julgo imperfeito, numa mera análise preliminar: Nada muda em relação à legislação anterior, nem a 8080, nem outras, pois Decreto algum pode fazê-lo. Apenas aprofunda o entendimento e a operacionalização.
  • No mérito o risco. Lamentabilissimamente, o Decreto não regula o uma série de questões, algumas delas extremamente polêmicas, mas, fundamentais ao funcionamento do SUS como enumero a seguir.
  • Por exemplo a questão das transferências de recursos federais para estados e municípios, onde existem artigos essenciais que jazerão intocáveis, como o Art.35 na totalidade. Descumpre-se a lei por falso argumento de desregulamentação inexistente (o que seria desnecessário) e deixa-se exatamente de regulamentar no momento definido e possível.
  • O argumento usado foi a existência da regulamentação da EC-29 no Congresso e que trata do assunto. Com isto, nem se cumpre hoje e desde sempre o que trata de financiamento na 8080, nem se regula por decreto à espera de uma decisão ainda imaginária do Congresso e que lá jaz desde 2003 e no andar da carruagem lá ficará por mais alguns anos, sem acontecer.
  • Não entendi, ainda, que técnica legislativa é esta que não regulamenta o que já está numa lei há vários anos, para não sensibilizar o Congresso que tem modificações para esta lei e nem sabe, nem se compromete a aprová-la. Reles mortais, jamais entenderemos.
  • A questão de regulamentação do desempenho (a meu ver erradamente traduzido na mídia como mérito criando a meritocracia) é questão já prevista na Lei 8080 no seu artigo 35, IV como um dos critérios de transferência de recursos: desempenho técnico, econômico e financeiro no período anterior. E não pode ser definida como única ou mais importante das características de transferência. Tem-se que fazer o mix de critérios, como previsto na Lei 8080, Art.35.
  • Pode-se  cometer iniquidade redistributiva, transferindo mais recursos a quem já tem mais desempenho e prejudicando a população de outros locais com menos desempenho mas, com muito mais necessidades.
  • Outro ponto não tocado foi o do FUNDO DE SAÚDE e sua operacionalização, ponto de tantos desencontros e de tantas normas díspares. Perdeu-se uma grande chance de fazê-lo. Tem-se um Decreto desde 1994 sobre as transferências fundo a fundo, mas nada sobre a organização e funcionamento do Fundo de Saúde com sua peculiaridade.
CONCLUINDO:

Demos um passo à frente com atraso de 20 anos. Não é perfeito e nem é completo. Muito dirão por que mais normas se já foram feitas várias inclusive as mais recentes do pacto com objetivos, metas e indicadores?

O Decreto é muito maior, mais abrangente e mais eficaz que todas as normas que até hoje foram feitas e são um aperfeiçoamento do sistema, tanto pela sua abrangência como seu nível hierárquico na legislação.

O Decreto não é a salvação do SUS, seria muito pouco. Sempre resumo no final que vida e saúde é um esforço que demanda melhor cumprimento do sistema de saúde já definido, mais eficiência em sua execução vedando-se os caminhos errados do mau uso e da corrupção e também é necessário mais dinheiro. Mais um instrumento do SUS de busca de vida-saúde para as pessoas, com qualidade, o que depende de muitas questões e de muitas pessoas.

P.S. – *OBS.: Tive o privilégio de acompanhar este Decreto desde sua concepção pela Lenir Santos, advogada sanitarista. Mais tarde foram ouvidos membros da direção do MS, CONASS E CONASEMS e alguns técnicos cujas críticas e sugestões foram incorporadas por ela.

Lenir já vinha, desde anos atrás, mais intensamente a partir de 2005, elucubrando algumas teses sobre o SUS. Traduzia ela a visão de jurista dos dispositivos das CF e LOS, como o padrão de integralidade, a rede interfederativa de saúde e seus colegiados (objeto de sua tese de doutoramento, em conclusão na UNICAMP), o mapa sanitário, o contrato organizativo da ação pública (uma construção original dela) e a regulação do acesso nacional a ações e serviços de saúde. Em 2007 foi co-autora do “SUS: o espaço da gestão inovada e dos consensos interfederativos”.  Lenir apresentou ao Ministro Temporão a idéia de redigir uma minuta de Decreto de Regulamentação da Lei 8080 com conceitos, princípios, diretrizes, institucionalização da CIB e CIT. O projeto foi concretizado por Lenir via Fiocruz. Sua finalização coincidiu com a troca de Temporão por Padilha que entendeu a importância de dar continuidade ao projeto, finalmente sancionado pela Dilma e publicado em 29/6/2011. A minuta do decreto teve que se submeter ao crivo jurídico da Casa Civil, o que levou a mudanças na versão original discutida no MS, CONASEMS e CONASS. Isto faz parte dos processos governamentais.

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