segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Tabela de Procedimentos ou Partilha de Recursos Federais?

A Constituição determina que os municípios devem cuidar da saúde da população com a cooperação financeira da União e dos Estados. A Lei 8.080/90, em seu art. 35, estabelece critérios para a partilha dos recursos da União para os Estados e Municípios. Por sua vez, a EC 29, de 2000, determina que lei complementar irá dispor sobre os critérios de rateio dos recursos da União para Estados e Municípios, lembrando que a Lei 8.142/90 também trata do tema.

São vários os dispositivos que rezam sobre o rateio dos recursos da União para os Estados e Municípios financiarem a saúde brasileira. Os critérios para a partilha dos recursos são obrigatórios e não voluntários, motivo de desde o inicio do SUS, termos nos insurgidos contra a proposta de realizar as transferências obrigatórias por convenio, documento jurídico próprio para as transferências voluntárias.

Por outro lado, a Lei 8.080/90, também dispõe sobre a forma de remuneração dos serviços privados de saúde complementares aos públicos. São os serviços que o Poder Público contrata de terceiros para complementar aquilo que lhe falta. É a participação complementar do setor privado no SUS. Estes serviços, de acordo com o art. 26 da Lei 8.080/90, devem ser remunerados por tabela de procedimentos. Neste ponto sempre defendi que à União cabe apenas dispor sobre valores referenciais, parâmetros de custos, sob pena de ferir a autonomia dos demais entes da Federação para dispor sobre seu preço.

Podemos afirmar que: a) de um lado temos o art. 35 definindo critérios para a partilha dos recursos da União para os demais entes (partilhas federativas); e b) de outro, o art. 26, dispondo sobre os recursos que devem remunerar os serviços privados contratados pelo Poder Público.

Este é o direito formal.

A realidade. De um lado, o art. 35, abandonado em seus fundamentos, não sendo utilizado para a partilha dos recursos federais; de outro, as tabelas de procedimentos (herança inampiana para remunerar serviços privados contratados de terceiros) sendo utilizados como fórmula para as partilhas da União.

O Ministério da Saúde utiliza a tabela de procedimentos, prevista no art. 26 para remunerar os serviços privados, em substituição aos critérios legais do art. 35, que trata especificamente das transferências obrigatórias da União para os Estados e Municípios financiarem seus planos de saúde.

São anos de ilegalidades sem os órgãos e entes de controle dos recursos públicos se insurgirem contra elas nem nunca ter questionado a substituição de critérios para o transpasse de recursos entre os entes federativos. Há 21 anos que a inadequação persiste sem nada acontecer.

Este viés federal de considerar os demais entes da federação como seus prestadores de serviços no tocante à partilha dos recursos, tem trazido graves problemas para a organização do SUS, uma vez que o financiamento por produção, fundado em tabela de procedimentos e não em ações e serviços de saúde previstos nas programações dos planos de saúde dos entes federativos, não traduzem a realidade da saúde da população e deturpa o planejamento. Daí já ter afirmado por diversas vezes que a organização do SUS foi pautada pelo financiamento federal e não por um planejamento real assentado nas necessidades de saúde da população. Por isso o planejamento na saúde – em especial o PLANEJASUS – ter sido mera figura de retórica.

É importante, agora, a partir da RENASES – Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde, criada no Decreto Federal 7.508/2011, inverter as regras de discussão da integralidade da assistência à saúde e seu correspondente financiamento.

A integralidade não pode se confundir com tabela de procedimentos médicos e terapêuticos, conceito redutor do direito à saúde. Saúde tem conceito amplo que implica na prevenção, proteção e recuperação, além da qualidade de vida que o País oferece aos seus cidadãos. O direito à saúde deve ser satisfeito independente de tabela de procedimentos, a qual foi criada para definir parâmetros de custo dos serviços de saúde contratados do setor privado. E parâmetros de custos não é direito à saúde.

O direito à saúde, expressado na integralidade da assistência à saúde, deve ser satisfeito no âmbito do plano de saúde do ente federativo, o qual deve ser financiado com recursos próprios, somados aos valores das partilhas constitucionais previstas no art. 35 da Lei 8.080/90 e na EC 29/2000, com o plano de saúde sendo o resultado de um planejamento que aponta para o atendimento das necessidades de saúde da população quanto à sua promoção, proteção e recuperação.

Enquanto não se regulamenta a EC 29 por lei complementar, o art. 35 da Lei 8.080/90 está recepcionado pela EC 29 e deve ser cumprido. Que se cumpra a lei e a organização do SUS se assente nas reais necessidades de atendimento das demandas da população e não no financiamento.
 
Lenir Santos, Advogada especializada em Direito da Saúde. Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Sanitário da UNICAMP-IDISA. Coordenadora do IDISA

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