terça-feira, 8 de novembro de 2011

O SUS que funciona; O SUS que fracassa

Revista Época

O movimento lançado na internet para defender o tratamento de Lula num hospital do governo demonstra falta de conhecimento sobre o sistema público de saúde. Conheça os dois sistemas brasileiros

CRISTIANE SEGATTO, COM MATHEUS PAGGI

Na mesma manhã em que a notícia do câncer do ex-presidente Lula foi divulgada, alastrou-se na internet um movimento em defesa de que ele se trate no Sistema Único de Saúde (SUS). O combustível das manifestações é uma mistura de preconceito, falta de conhecimento sobre o serviço público de saúde e boa memória.

Talvez pelo fato de Lula ter uma origem humilde, há quem se incomode ao vê-lo ser atendido no Sírio-Libanês, uma instituição de elite. Segundo o cardiologista Roberto Kalil Filho, Lula e a ex-primeira-dama Marisa têm um plano de saúde da empresa SulAmérica. É difícil conceber, porém, que um ex-presidente mostre a carteirinha do convênio quando é admitido, de braços abertos, num hospital. ÉPOCA fez essa pergunta ao Sírio-Libanês e recebeu a seguinte resposta: “Legalmente, não podemos informar como o paciente paga nem qual é a fonte pagadora”. Os privilégios garantidos às autoridades podem ser questionados, mas não é justo que o ataque seja pessoal. Lula não é o único a desfrutar as prerrogativas do poder. O Senado garante um excelente plano de saúde aos 81 senadores, cônjuges e filhos de até 24 anos que estiverem na universidade. Os ex-senadores têm o mesmo direito. No total, cerca de 400 pessoas colocam na conta do Senado suas despesas de saúde.

A falta de informação

Quem acha que o SUS é necessariamente ruim não o conhece. Esse fato foi demonstrado no ano passado por uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Ela foi realizada nos domicílios de 2.773 brasileiros de todo o país. O programa Saúde da Família foi considerado “muito bom ou bom” por 80% dos entrevistados. A mesma opinião foi expressada por 69% dos que avaliaram a distribuição de medicamentos e por 60% dos que foram atendidos por médicos especialistas. O grau de satisfação foi um pouco mais baixo nos itens urgência e emergência (48% acharam que o serviço é bom ou muito bom) e postos de saúde (44%).

O SUS não é homogeneamente ruim. Ele é desigual e injusto. Um hipertenso que mora em São Paulo ou no Amazonas deveria ter o mesmo acesso aos recursos de saúde. Deveria conseguir realizar os mesmos exames, receber os mesmos medicamentos, ser orientado sobre como usá-los e como prevenir outros problemas de saúde. Como se sabe, isso não ocorre nem sequer dentro do mesmo município.

Para avançar na discussão, é preciso reconhecer que o Sistema Único de Saúde não é único. Há no Brasil dois SUS. O que funciona e o que fracassa. Se Lula quisesse fazer demagogia, poderia receber no SUS um tratamento equivalente ao que fará no hospital cinco estrelas. Bastaria entrar no carro na saída do Sírio-Libanês, subir em direção à Avenida Paulista e virar à direita para chegar à Avenida Dr. Arnaldo. Logo no início avistaria o espigão de 28 andares onde funciona o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp).

Por uma razão política, mais do que médica, é improvável que Lula decida se tratar ali. O instituto criado durante o governo José Serra é o orgulho dos tucanos. Se esse fosse um mero detalhe, no Icesp Lula teria acesso, pelo SUS, à mesma quimioterapia e à mesma radioterapia que fará no hospital privado. E até ao mesmo médico. O diretor do Centro de Oncologia do Sírio-Libanês, Paulo Hoff, também é diretor clínico do Icesp.

“Não conheço o Primeiro Mundo, mas acho que Primeiro Mundo é isto”, diz o serralheiro José Pedro Ferreira Andrade, de 62 anos. Ele teve o mesmo câncer de Lula e diz que foi muito bem atendido no Icesp. “Não sabia que existia uma coisa dessas no SUS”, afirma. No fim do ano passado, sentiu tosse, rouquidão e um pigarro persistente. Procurou o Hospital das Clínicas, onde um tumor de 3 centímetros na laringe foi detectado. Saiu de lá com a carta de encaminhamento para o Icesp. Cogitaram uma cirurgia, mas os médicos optaram pela quimioterapia e pela radioterapia para evitar que Andrade perdesse a voz. O tratamento terminou. Agora é a manutenção.

Alguns efeitos colaterais da quimioterapia persistem. O paladar praticamente desapareceu. A voz é perfeitamente compreensível, mas Andrade não está muito satisfeito com ela. “Nos anos 1980, cantava em barzinhos. Agora, ela ficou estranha, grossa demais”, diz. Além do tratamento médico, no Icesp ele é acompanhado por fonoaudióloga, nutricionista e psicóloga.

O segredo do Icesp é a gestão. A instituição é uma Organização Social de Saúde (OSS), um modelo inspirado na Espanha. O Estado delega a uma entidade privada, sem fins lucrativos, o gerenciamento de hospitais públicos e garante recursos mensais para manutenção, exercendo controle rígido sobre a gestão dos gastos e serviços prestados. A cada ano, 15 mil pacientes novos são atendidos lá. Um em cada cinco tem plano de saúde, mas procura a instituição para receber os bons tratamentos que os convênios não querem pagar.

Não é verdade que só os pobres usam o SUS. Cerca de 45 milhões de pessoas têm planos de saúde no Brasil. Em geral, usam o plano apenas para consultas e internações de custo baixo ou moderado. Quando precisam de um serviço caro e de alta complexidade (transplantes ou drogas caríssimas contra o câncer), muitas delas recorrem ao SUS. Ao fazer isso, oneram o Estado duplamente, já que normalmente descontam de seu Imposto de Renda suas despesas regulares com o plano privado. Trata-se de um direito de qualquer cidadão. Mas com isso o Poder Público subsidia os planos de saúde, ao assumir as responsabilidades por tratamentos mais complexos. Como o orçamento público é limitado, e os custos da medicina de ponta só crescem, o governo destina cada vez mais dinheiro para servir a classe média, cujo atendimento poderia ser pago pelos convênios particulares.

Nos últimos anos, agravou-se um fenômeno conhecido como judicialização da saúde. Mais cidadãos entram na Justiça para exigir que o município, o Estado ou o governo federal forneçam medicamentos que não estão disponíveis no serviço público. Amparados pelo Artigo 196 da Constituição, segundo o qual “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, quase sempre vencem a disputa.

Em alguns casos, processar o Estado é a única forma de ter acesso a medicamentos que realmente salvam vidas e, pelo benefício que oferecem, têm preços justificáveis. “Se a judicialização não existisse, talvez os gestores de saúde não se interessassem em melhorar o sistema”, diz Paulo Hoff. “O problema é que, em geral, ela tira do gestor a possibilidade de planejar o que fazer com sua verba.” A judicialização torna o SUS ainda mais injusto: aqueles com escolaridade mais elevada e acesso a bons advogados recebem do Estado o que há de mais moderno e mais caro.

A boa memória

Em 2006, Lula disse uma bobagem durante uma visita a um hospital de Porto Alegre: “A gente não está longe de atingir a perfeição no tratamento de saúde neste país”. Muitos dos que sugeriram que ele se tratasse no SUS mencionaram essa frase – além de outras, em que o então presidente fazia claros exageros sobre a qualidade do sistema brasileiro. Em oito anos de mandato, Lula não conseguiu transformar a saúde pública num serviço eficiente, capaz de atender todas as pessoas com justiça e equidade. Tampouco conseguiram seus antecessores.

Como Lula veio da pobreza e promoveu vários avanços sociais em seus mandatos, talvez os brasileiros esperassem que ele também consertasse a saúde. Ela não estava perto da perfeição em 2006, não está em 2011 e nada indica que estará tão cedo. Instituições bem administradas, capazes de atender com dignidade milhares de pacientes pelo SUS e curá-los do câncer, existem na maioria dos Estados. Ainda assim, não são suficientes para atender à demanda.

Um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), divulgado na semana passada, expõe o problema. Pelo menos 58 mil pacientes de câncer não conseguiram fazer radioterapia em 2010. Ou seja: 34% dos que precisavam não conseguiram ser atendidos. Outros 80 mil (53% do total) demoraram muito para conseguir uma cirurgia. O tempo médio de espera por uma quimioterapia foi de 76 dias. Apenas 35% dos pacientes foram atendidos em 30 dias (prazo recomendado pelo Ministério da Saúde). Na radioterapia, são 113 dias de espera, em média. Apenas 16% são atendidos no primeiro mês.

O maior problema do tratamento do câncer é a falta de diagnóstico precoce. O cidadão percebe que há algo errado e procura o posto de saúde do bairro. Como essa rede básica é falha e desorganizada, ele perde um tempo precioso até conseguir acesso a um centro especializado na doença. “Quase 60% dos pacientes de câncer de laringe chegam em estágio muito avançado. Dá até desânimo”, diz Roberto Rivetti Suelotto, diretor técnico do Instituto do Câncer Arnaldo Vieira de Carvalho, em São Paulo. De todos os pacientes tratados no hospital beneficente, 93% são do SUS.

“Lula conseguiu um diagnóstico rápido porque vive cercado de cuidados”, diz Suelotto. “Se fosse um operário reclamando de rouquidão, receberia uma pastilha e um anti-inflamatório num posto de saúde e voltaria para casa.” O câncer de laringe impõe uma dificuldade adicional. Os sintomas são sutis. Raramente alguém desconfia de tumor quando a pessoa reclama de rouquidão persistente, pigarro, dor de garganta, dificuldade de engolir. Seis meses antes de se aposentar, o jardineiro Antonio Fogaça, de 58 anos, começou a sentir uma estranha rouquidão em sua voz. Com o avanço dos dias, o problema só piorava. Sua irmã, Nivercina, levou-o ao pronto-socorro mais próximo de sua casa, no Jardim Ana Estela, em Carapicuíba, na Grande São Paulo. O primeiro diagnóstico, impreciso, foi sucedido pela considerável diminuição da qualidade da voz de Fogaça, que passou a falar cada vez menos. No retorno ao pronto-socorro, ela foi aconselhada a levar o irmão para tentar uma vaga no Hospital das Clínicas. Não conseguiram. Nivercina o levou então ao Instituto Arnaldo Vieira de Carvalho.

Quando finalmente conseguiu receber o diagnóstico, Fogaça não escapou da cirurgia nem das limitações impostas por ela. O tumor de 5 centímetros foi retirado, mas ele perdeu a voz. Hoje, só se comunica por gestos ou usa um caderno surrado e uma caneta para transmitir o que pensa em frases curtas. Para se alimentar, precisa bater todos os alimentos no liquidificador. Tem um orifício no pescoço, que mantém coberto com um curativo. O choque provocado pela doença foi brutal, mas passou. “Eu me conformei”, escreveu ele.

É fundamental que o Brasil ofereça atendimento precoce a pessoas como ele. Para que todos tenham direito ao mesmo tipo de assistência, a sociedade precisa assumir que não é possível oferecer toda e qualquer tecnologia a todos. Nem as nações mais ricas fazem isso. Alguém terá de assumir o ônus político de dizer isso. O Brasil investe cerca de 8% do PIB em saúde, somados os gastos públicos e privados. É pouco. A saúde precisa de mais dinheiro. Se a criação de um novo imposto foi rechaçada, as verbas precisam vir de outros setores que competem pelos mesmos recursos. Mais dinheiro, no entanto, não é garantia de aumento da qualidade. “Em um sistema com decisões fragmentadas, que priorizam o curto prazo, qualquer recurso novo corre o risco de atender poucas pessoas ou ser desperdiçado”, diz o professor Marcos Bosi Ferraz, do Centro Paulista de Economia da Saúde, da Universidade Federal de São Paulo. Enquanto o dinheiro extra não vem, o pouco disponível continuará indo para o ralo da má gestão.

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