quinta-feira, 26 de maio de 2011

O debate necessário

Novos e antigos personagens se manifestam, atualizando nosso orgulho de pertencimento ao movimento que liderou a luta histórica da construção do Sistema Único de Saúde no Brasil. É importante salientar que as opiniões são oriundas de autores inseridos em grupos diversos (Saúde Coletiva, Saúde Pública, Medicina de Família, Medicina Social etc.) com matizes teóricos bastante diferenciados, o que é mais uma evidência da riqueza e vigor teórico-conceitual presente no debate. Com isso também quero dizer que considero todos os pontos de vista legítimos e bem embasados nas diferentes correntes de pensamento subjacentes à produção de conhecimentos e práticas sanitárias, dentro do contexto mais geral do campo da Reforma Sanitária Brasileira.

Feitas as considerações preliminares me sinto à vontade para apresentar meu ponto de vista, solicitando especial compreensão para quem tem somente a credencial de um “militante de base” do Movimento pela Reforma Sanitária.

Vou entrar no debate sobre o que o Heider Pinto, do DAB, está chamando de ‘nova’ Proposta Nacional de Atenção Básica. Examinando com algum cuidado, a única novidade mesmo é a proposta do Programa de Melhorias de Acesso e da Qualidade. Este programa seria o responsável pelo aporte de mais recursos para a Atenção Básica, com possibilidades de até dobrar o PAB variável, dependendo de avaliações de desempenho, podendo se candidatar ao financiamento, tanto as Unidades Sanitárias tradicionais, quanto as unidades da Estratégia Saúde da Família. Segundo Helder, essa política procura conservar as conquistas da ESF e recuperar as Unidades Sanitárias tradicionais. Tudo parece muito lógico e simples. Mas admito que estou inquieto e me sinto desconfortável, pois tenho a sensação de estar frente a um discurso estratégico, e não atino compreender qual seria a razão instrumental subjacente a me causar tamanha preocupação.

Posso e desejo estar enganado, mas me sinto na obrigação de apontar contradições visualizadas a partir dos meus referenciais.

1. Continuidade x Ruptura
No Pacto pela Vida, de 2006, a Política Nacional de Atenção Básica apresenta “a Estratégia Saúde da Família como modelo de Atenção Básica e centro ordenador das redes de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde”.

No Mais Saúde para Mais Brasileiros, de 2008, a Estratégia Saúde da Família é apresentada como projeto central para o desenvolvimento e consolidação da Política Nacional de Atenção Básica e do SUS.

Agora, a ‘nova’ Política Nacional de Atenção Básica, revoga a condição de ‘modelo’ único de Atenção Básica para a ESF e recoloca o modelo baseado nas Unidades Sanitárias tradicionais como concorrente de modelo assistencial em Atenção Básica. Essa mudança é muito mais profunda do que os dirigentes estão querendo demonstrar. Ela significa um abandono conceitual em relação aos melhores referenciais nacionais e internacionais na área de Atenção Primária à Saúde ( ou Atenção Básica). Em consequência produziu um impacto muito negativo em grande parte dos profissionais da ESF, principalmente naqueles com compreensão do papel estratégico e os que têm compromissos mais intensos com essa política.

2. Insegurança conceitual

Em entrevista à RADIS, o Ministro Padilha ponderou em relação à seguinte pergunta: Uma crítica às UPAs é que elas contrariam a organização do sistema a partir da atenção primária. Como articular as duas ideias?
Resposta do Ministro: Na UPA, você pode perceber se o perfil de atendimento revela ou não a insuficiência de resolutividade da atenção básica.

Além de criar confusão entre ‘modelos’ de Atenção Básica, como dito acima, a ‘nova’ PNAB retira da Atenção Primária em Saúde a condição de ordenador das necessidades de serviços do SUS. Se o Sr. Ministro não se confundiu, as UPAs passariam a ter o papel estratégico de estruturação e reordenamento dos serviços do SUS, em substituição ao que estava oficialmente previsto como sendo atribuição da Estratégia Saúde da Família.

3. Diferença conceitual

É preciso reconhecer que existem enormes diferenças conceituais entre os ‘modelos’ da ESF e Unidades Sanitárias tradicionais. A ‘nova’ PNAB ainda não explicitou os fundamentos teóricos que embasam a nova escolha. Minha hipótese é de que os referenciais que embasaram todo o desenvolvimento da ESF são conflitantes e, mesmo contraditórios, em relação aos argumentos apresentados por diversos apoiadores da ‘nova’ PNAB. Em muitos casos há contradições nos argumentos entre os apoiadores. Oportunamente poderei indicar as contradições. O importante, entretanto, não é apontar elementos que já apareceram na discussão. O mais relevante é que esse debate precisa ser claramente explicitado, pois há um contencioso não resolvido em torno de questões fundantes como projetos de sociedade, projetos de desenvolvimento, conceitos de saúde e suas implicações nos modelos de cuidado, cuidado individual/coletivo, acomodação social x transformação social, saúde coletiva/saúde pública/medicina social, disputas epistemológicas entre crise dentro da modernidade ou da modernidade x pós-modernidade, etc. Portanto, é preciso evitar a simplificação.

Os tipos de recorte podem ser diversos, mas a atualização dessa discussão também se faz necessária pela presença na cena prática e política de um novo e numeroso contingente de ‘personagens’ na Atenção Básica. Há uma enorme massa de novos fatos empíricos à espera de um novo olhar compreensivo. Para quem fala desse lugar, digo em nome de muitos, que nos sentimos como aquele menino, personagem do Galiano, “nos ajudem a olhar esse mar…..”.

4. O desprestigiamento do médico especialista em Medicina de Família e Comunidade

“Um dos maiores benefícios que um usuário do SUS pode alcançar no Brasil, é ter um médico de família que dá seu número de celular para seus pacientes.” Foi isso que me disse um familiar de um paciente que orientei por telefone num fim de semana. O referido paciente agudizou sintomas de patologia mental pré-existente.

Quando a muitos parecia que o Brasil tinha chegado ao entendimento que o melhor profissional médico para a Atenção Básica era o Médico de Família e Comunidade, eis que ressurge um movimento em favor do ‘aproveitamento’ de outras especialidades, já que tem muitos especialistas nessas áreas no mercado.

Isso é especialmente grave quando surgem em muitas faculdades de medicina disciplinas e internatos com os conteúdos e nomes de Medicina de Família e Comunidade, como é o caso da faculdade onde sou professor. E agora, o que diremos aos nossos alunos, se o próprio Ministério da Saúde mostra que não faz diferença, pode fazer especialização em Pediatria, Gineco ou outras e, se não tiver sucesso na inserção no mercado privado, ainda assim pode conseguir um emprego de 20h em alguma Unidade Sanitária tradicional. Todo esforço anterior em favor da formação médica voltada para atender as necessidades da ESF fica desmoralizado. Teremos que pedir desculpas aos nossos alunos por termos insistido de que a opção pela formação de médicos voltados para essa estratégia era uma coisa séria. Lamento muito, pois essa leviandade nos faz retroceder a ‘nenhuma política’. Particularmente está sendo um dos pontos mais dolorosos dessa ‘nova’ política.

Quem tem dificuldade para entender isso, deve fazer um estágio rápido com alunos de medicina e tentar entender seu imaginário profissional. Disputar dentro das faculdades de medicina uma formação médica sensível às necessidades da APS e SUS não é uma tarefa fácil, mas piora muito quando os símbolos trocam de sinal.

Em tempo: Sempre acreditei que é preciso disputar a formação médica e é essencial para a atenção à saúde no SUS que se tenha médicos altamente qualificados, que saibam trabalhar em equipe, saibam fazer promoção da saúde, mas que sejam igualmente muito bons para atender pessoas quando elas adoecem. O projeto de uma outra medicina é possível. Para isso é preciso fazer uma crítica radical à influência cartesiana em todo o projeto da medicina Científica Moderna. Particularmente gosto da ideia que essa crítica possa ser feita a partir do referencial espinosano (via M. Chaui), o que também implicaria romper com algumas arrogâncias presentes no discurso/prática médica. O que falo da medicina é, certamente, válido para enfermagem, odontologia, psicologia, nutrição etc.

Para finalizar, discordo do Heider quando ele diz que a ‘nova’ PNAB é uma superação dialética. Para o meu entendimento, ele apresenta uma dialética lampedusiana (invertida), pois onde ele vê superação dialética eu vejo abandono à dialética, ao colocar lado à lado modelos conflitantes , escondendo as contradições.

por Odalci José Pustai, Prof. Adjunto do Dep. Med. Social FAMED/UFRGS
 

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